Metrópoles de países em desenvolvimento compartilham os mesmos problemas de mobilidade com baixos níveis de serviço do transporte público, desigualdade de acessibilidade, altos índices de acidentes de trânsito, congestionamento e poluição ambiental. Há iniquidade geral de acessibilidade, segurança e conforto nas condições de transporte que reproduz e perpetua a desigualdade socioespacial (VASCONCELLOS, 2000) fruto do processo histórico de urbanização da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) que constituiu um território caracterizado pela setorização habitacional por renda, concentração de oferta de empregos e distribuição heterogênea da infraestrutura de transportes (VILLAÇA, 1998). Políticas que retomam a década de 1950 em níveis federal, estadual e municipal foram favoráveis ao uso do automóvel, logo refletindo na baixa qualidade e eficiência do transporte coletivo sobre pneus, e na lenta expansão do sistema de alta capacidade sobre trilhos.
O transporte motorizado coletivo é essencial para vencer distâncias em manchas urbanas espraiadas, assim como sua acessibilidade através de facilidades de primeira e última perna/milha bem provisionadas. De forma que um sistema intermodal entre transporte coletivo e mobilidade ativa pode proporcionar uma acessibilidade socioeconômica mais igualitária e beneficios ambientais com redução da poluição do ar e melhoria da qualidade de vida da população. A intermodalidade especificamente com a mobilidade ativa por bicicleta amplia o raio de acesso ao transporte coletivo possibilitando a redução do tempo de viagem porta a porta e melhor acesso ao transporte coletivo.
Neste contexto, este ensaio contribui para compreensão das viagens e usuários em deslocamentos intermodais entre bicicleta e transporte coletivo de alta capacidade através da Pesquisa Origem e Destino de 2007 e 2017 do Metrô – Companhia do Metropolitano de São Paulo – na RMSP. Ainda, considerando que a maior parte da bibliografia existente sobre primeira e última perna/milha é originária de países desenvolvidos, este ensaio pretende contribuir no conhecimento em países em desenvolvimento, como base para futuras pesquisas.
VIAGENS INTERMODAIS
As viagens intermodais passam por questões no planejamento de transportes e planejamento urbano, ao depender da acessiblidade de ponto a ponto, da dispnibilidade dos múltiplos modos de transporte e de regulaçõs no uso e ocupação do solo. Wee (2015) relaciona quatro pontos de relevância na combinação entre modos de transporte, sendo o primeiro a oferta de múltiplas opções de viagens capaz de proporcionar ao usuário a possibilidade de escolha do modo mais eficiente para viagem. Outro ponto é a relevância da acessibilidade multimodal para acesso às estações principalmente a trens. O terceiro é a influência mútua dos sistemas de transporte de modo único e finalmente, a relevância da interação do transporte com a legislação de uso e ocupação do solo. Vasconcellos (2000) aponta que a maior parte das análises de transportes foca no modo único, sendo um desafio no campo de pesquisa expressar a acessibilidade em situações com múltiplos modos.
No campo das análises de viagens, a Pesquisa Origem e Destino (Pesquisa OD) é uma pesquisa amostral quantitativa realizada na RMSP. Sua periodicidade é a cada 10 anos desde 1967 e a partir de 1977 começou a computar modos ativos (a pé e bicicleta). Essa pesquisa é a mais abrangente no território da RMSP e por sua característica macro, possui limitação para computar viagens com modos de baixa ocorrência, como a bicicleta(LEMOS et al, 2016). Essa limitação não é um impeditivo para análises de deslocamentos intermodais com bicicleta na RMSP que serão desenvolvidos no decorrer do ensaio.
Entre as duas últimas Pesquisas OD (2007 e 2017) houveram avanços na legislação e implantação de infraestrutura cicloviária na RMSP. Quanto a legislação, a política de incentivo ao uso da bicicleta de 2006 (Lei estadual n 12.286) contribuiu na consolidação de infraestrutura cicloviária (entre elas os bicicletários) para promoção da bicicleta como modo de transporte.
O Política Nacional de Mobilidade Urbana 2012 determinou que cidades metropolitanas ou com mais de 20 mil habitantes tenham um Plano de Mobilidade e a partir dele, algumas cidades da RMSP criaram um plano para atender as demandas dos deslocamentos metropolitanos. O município de São Paulo foi um dos que mais avanços na legislação de intermodalidade ao criar metas de adequar bicicletários em todas as estações e terminais de transporte coletivo existentes e implantá-los em novas, possibilitar o transporte de bicicletas por veículos de transporte coletivo e expandir o sistema de bicicletas compartilhadas nas regulações urbanísticas do Plano Diretor Estratégico – PDE 2014 e Plano de Mobilidade de São Paulo – PlanMob 2015. Mas estações comtempladas com bicicletários estão aquém do necessário e algumas aquém da demanda regional. O levantamento da Ciclocidade (2020) apontou que apenas um terço das estações possuem a estrutura de estacionamento e algumas operam com capacidade menor que a demanda, sendo frequente encontrar bicicletas presas em árvores e mobiliário urbano no entorno da estação.
Os avanços na legislação refletem na implantação de bicicletários. Quando foi realizada a Pesquisa OD 2007, havia apenas um bicicletário com acesso ao Metrô e haviam 06 à CPTM, e em 2017, eram 14 com acesso ao metrô e 32 à CPTM (tabela 1) (CICLOCIDADE, 2020). O bicicletário de Mauá, operado pela Associação dos Condutores de Bicicleta de Mauá (Ascobike), e os da Tembici estão localizados próximos ao acesso das estações apesar de não serem operados pelas companhias de trem e metrô, e atendem aos deslocamentos de ciclistas ao sistema de transporte por trilhos.
Analisando as viagens das Pesquisas OD 2007 e 2017, percebe-se um aumento nas viagens utilizando a bicicleta. Em 2017, foram realizadas 389 mil viagens de bicicleta sendo 377 mil realizadas apenas com o modo bicicleta e 12mil são intermodais, correspondendo a 3,3% do total. São poucas as viagens intermodais de bicicleta, mas o aumento de intermodalidade nesses 10 anos foi de 92% (tabela 2).
A intermodalidade com bicicleta ocorre com transporte motorizado coletivo (metrô, trem e ônibus) e motorizado individual (motorista ou passageiro), sendo mais usada com o transporte coletivo. A intermodalidade com o sistema de transporte coletivo por trilhos é o mais frequentemente usado apresentando aumento de 222% no intervalo de 10anos, sendo 3.328 viagens em 2007 e 10.724 em 2017 (tabela 3). Os trilhos tem um caráter estruturante na mancha urbana (VILLAÇA, 1998) e é frequentemente usado na intermodalidade, por isso somente essas viagens intermodais com o transporte coletivo de alta capacidade por trilhos serão analisadas.
O motivo para escolha da bicicleta para os trechos de primeira e última perna/milha para estações em 2007 recaiam na pequena distância de deslocamento e para fugir dos custos do transporte coletivo. E 2017, o principal motivo foi a possibilidade de realizar atividade física, seguindo pelas condições de alto custo e lotação da condução (tabela 4). A migração do transporte coletivo para bicicleta se relaciona a insatisfação dos usuários com o sistema de transporte coletivo, onde 61% dos usuários de transporte coletivo (ônibus, trem e metrô) migraram para o sistema de bicicletas compartilhadas (Rabello, 2019).
O uso da intermodalidade entre as faixas de renda mais altas – 3, 4 e 5 – era inexistentes em 2007 e passou a ser captada em 2017. A faixa de renda 1 era a maior usuária em 2007, mas 10 anos depois não foi computada nenhuma viagem (tabela 5). Isso não significa que essa faixa reduziu o uso, mas sim um reflexo da limitação da pesquisa para modos com pouca ocorrência -- como mostrado por Lemos et al (2016) na ausência de viagens captadas na Pesquisa OD 2007 de no bicicletário de Mauá, o maior bicicletário da RMSP. As faixas de renda mais baixas seriam as maiores usuárias, já que como apontado por Rabello (2019) os deslocamentos menos custosos de até 7,5km são por modo único bicicleta e intermodalidade de bicicleta e transporte coletivo.
Em relação ao gênero, os ciclistas homens são maioria e em 2017, houve crescimento de ciclistas mulheres realizando mais intermodalidade que viagens de modo único por bicicleta. As mulheres são maioria nos modos coletivo e a pé, e poderiam se beneficiar da bicicleta como modo de transporte. Lemos et al (2016) pontua que a decisão das mulheres de pedalar é influenciada por estruturas sociais e físicas do ambiente urbano, como a inibição feminina por trás da ideia de “bicicleta ser coisa de menino”, a necessidade de usar a vestimenta adequada no ambiente de trabalho, a existência de espaços seguros com infraestutrutura cicloviária e um ambiente urbano amigável às bicicletas – velocidades reduzidas, prioridade dos modos ativos, entre outros.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O ensaio compilou informações sobre viagens intermodais de bicicleta e transporte coletivo na RMSP para aprofundar o conhecimento sobre primeira e última perna/milha em metrópoles de países em desenvolvimento, aproximar a relação mútua entre planejamento de transportes e planejamento urbano e contribuir com futuras pesquisas.
Os avanços legais e regulatórios para intermodalidade são coerente no diálogo de planejamento de transportes com o planejamento urbano e aos poucos propõe o uso da bicicleta como opção de modo de transporte para os deslocamentos diários.
A consolidação legal e provisão de infraestruturas para deslocamento por bicicleta e intermodalidade com o transporte coletivo contribuíram para o aumento das viagens intermodais, sendo que entre as duas últimas Pesquisas ODs, o aumento das viagens intermodais com o transporte coletivo de alta capacidade foi superior às viagens apenas de bicicleta. Mostrando que viagens se tornaram viáveis por facilidades ofertadas.
REFERÊNCIAS
CICLOCIDADE. Texto para discussão – Melhores práticas em bicicletários – São Paulo. 2020. Disponível em: <https://www.ciclocidade.org.br/bicicletarios>.
LEMOS, Letícia; HARKOT, Mariana; SANTORO, Paula; RAMOS, Isis. Mulheres, por que não pedalam? Por que há menos mulheres do que homens usando bicicleta em São Paulo, Brasil?, Revista Transporte y Territorio, 2016. p. 68-92.
RABELLO, Renata Cruz. Sistema de bicicleta compartilhadas: a disputa do espaço urbano. Dissertação (Mestrado em Paisagem e Ambiente) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo na Universidade de São Paulo. São Paulo, 2019.
VASCONCELLOS, Eduardo. Transporte urbano nos países em desenvolvimento: reflexões e propostas. São Paulo: Annablume, 2000.
VILLAÇA, Flávio. Espaço Intra-urbano no Brasil. São Paulo: Studio Nobel, 1998.
WEE, Bart van. Accessible acessibility research challenges. Journal of Transport Geography jornal, 2015. pp. 9-16.
Deiny Façanha Costa é arquiteta e urbanista, mestranda em Planejamento Urbano pela FAU USP, pós graduada em Mobilidade e Cidade Contemporânea pela Escola da Cidade e graduada pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. É Conselheira Participativa da Subprefeitura de Pinheiros (2020-2021) e foi professora assistente da Escola da Cidade em 2020.
O ensaio aqui exposto é fruto da monografia da Pós Graduação “Mobilidade e Cidade Contemporânea” desenvolvida na Associação Escola da Cidade intitulado “Transições de Modos”.